Documento inédito mostra como a repressão monitorava integrantes do então embrionário movimento negro brasileiro
Com medo de que a luta pela igualdade racial
crescesse à luz de movimentos internacionais como o Panteras Negras e se
voltasse contra a polícia, a ditadura passou a seguir os passos de
militantes e reuniões do embrionário movimento negro brasileiro.
Ufmg.com
Abdias do
Nascimento, entre outros integrantes do movimento, foram espionados
Documento de 24 de outubro de 1979 mostra como o IV
Exército, no Recife, descrevia um foco de “problemas”. “A partir de 1978
apareceu um novo ponto de interesse da subversão no País, particularmente nos
estados do Rio de Janeiro e, com mais ênfase, na
Bahia: a exploração do tema racismo, procurando demonstrar a sua existência e
colocar o negro brasileiro como motivo de discriminação”, diz o texto de sete
páginas.
O relatório nunca antes divulgado revela que o
“método” utilizado para a obtenção das informações deu-se pela “infiltração em
entidades dedicadas ao estudo da cultura negra, por meio de palestras em
reuniões e simpósios”, como a IV Semana de Debate sobre a Problemática do Negro Brasileiro, em abril de
1978 na Bahia. A temática das palestras, segundo os militares, tratava de temas
como “a tão falada democracia racial não passa de um mito”, “o racismo no
Brasil é pior do que no exterior, porque é sutil e velado”, “a existência da
Lei Afonso Arinos, contra o racismo, é prova de que ele existe”, “a Abolição da
Escravatura foi imposta pelas necessidades da economia capitalista e não por
uma preocupação sincera com a situação do negro”.
O documento havia sido solicitado em 11
de junho, por meio da Lei de Acesso à Informação, ao Comando do Exército, que
oito dias depois respondeu não possuir arquivos sobre o monitoramento de
ativistas negros. A Controladoria-Geral da União (CGU) encontrou, no entanto, o
relatório no Arquivo Nacional, em Brasília, há duas semanas. Segundo o ouvidor-adjunto
da CGU, Gilberto Waller, esta é a primeira vez que se encontra um documento
confidencial elaborado exclusivamente para tratar do tema, quando o que se via
até então eram trechos e citações a outros textos. “Vemos que o Estado se
preocupou com o movimento negro a ponto de ter classificado as informações”,
explica. “Na visão da CGU, em termos de acesso à informação, é um grande ganho
conseguir algo de valor histórico tão relevante. ”
O relatório, cujo rodapé alerta: “Toda e qualquer
pessoa que tome conhecimento de assunto sigiloso fica, automaticamente,
responsável pela manutenção de seu sigilo. Art. 12 do decreto no 79.099,
de 6 de janeiro de 1977”, cita a mobilização nacional em torno da formação do
movimento contra a discriminação racial. “Os grupos do Movimento Negro de
Salvador são: Ialê, Malê, Zumbi, Ilialê, Cultural Afro-Brasileiro. Esses grupos
apresentaram, no dia 8 julho de 1978, ‘moção de solidariedade aos integrantes
do movimento paulista contra a discriminação racial, pelo ato público
antirracista do Viaduto do Chá’”.
O ato, segundo a socióloga Flavia Rios, autora da
tese Elite Política Negra no Brasil: Relação entre movimento social,
partidos políticos e estado, diz respeito à marcha que saiu naquele dia do
Viaduto do Chá em direção ao Teatro Municipal para a criação do Movimento
Unificado contra a Discriminação Racial, que mais tarde se tornaria o Movimento
Negro Unificado Contra a Discriminação Racial. “Ele é formado por ativistas de
várias regiões do País, tem essa característica nacional”, conta a também
coautora da biografia sobre a militante negra Lélia Gonzalez. “Havia uma
preocupação da ditadura de que ideais do movimento armado Panteras Negras, por
exemplo, e da luta dos direitos civis americanos pudessem chegar aqui. Por
isso, o regime acompanhou vigilantemente manifestações políticas e encontros. ”
O informe até pouco considerado inexistente fala
ainda sobre uma “campanha artificial contra a discriminação no Brasil” e lembra
que, “em virtude das restrições políticas”, o Movimento Negro de Salvador
passou a realizar reuniões paralelas e a adotar organizações celulares, com
base nos “centros de luta”, compostos de três integrantes. A capital baiana
teria sete desses centros, cuja função era “mobilizar, organizar e
conscientizar a população negra nas favelas, nas invasões (de terras urbanas),
nos alagados, nos conjuntos habitacionais, nas escolas, nos bairros e nos
locais de trabalho, visando a formar uma consciência dos valores da raça”.
Além do encontro nacional do Movimento Negro de
Salvador, entre 9 e 10 de setembro de 1978, no Rio de Janeiro, os arapongas*
descrevem a Terceira Assembleia Nacional do Movimento Negro Unificado, em 4 de
novembro de 1978, na capital baiana, com militantes de São Paulo, Rio de
Janeiro, Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Espírito Santo. Citam o
Congresso Internacional da Luta contra a Segregação Racial entre 2 e 3 de
dezembro de 1978, em São Paulo. E relatam o ciclo de palestras do Núcleo
Cultural Afro-Brasileiro, no segundo semestre de 1978 em Salvador, do qual
participaram opositores como o deputado federal baiano Marcelo Cordeiro e o
paulista Abdias do Nascimento, professor emérito na Universidade de Nova York.
Além do acadêmico, são citados militantes monitorados como José Lino Alves de
Almeida e Leib Carteado Crescêncio dos Santos, além do senador baiano Rômulo
Almeida e “agitadores angolanos no movimento negro, caracterizados como
refugiados da guerra civil”.
Em relação ao teor da agenda do Movimento Negro à
época, os repressores ressaltam que a pauta era composta de pontos como a
necessidade de se contestar o regime, aprofundar o engajamento no movimento
pela anistia, projetar no exterior a imagem do “mito da democracia racial
brasileira”, escolher o 20 novembro para o Dia Nacional da Consciência Negra,
melhorar as condições de emprego da população negra, e buscar dar fim à sua
marginalização na sociedade e à maior proporção de negros nas
penitenciárias.
Estima-se que 42 dos 434 mortos e desaparecidos
políticos durante a ditadura eram negros.
Fonte:
Site da revista Carta Capital: http://www.cartacapital.com.br/revista/867/a-paranoia-nao-tem-cor-1121.html,
acessado em 22/09/2015
* Arapongas era como eram chamados os agentes policiais da
ditadura que gravavam ilegalmente conversas telefônicas ou permaneciam
infiltrados em eventos. (nota da editora)
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